terça-feira, 20 de março de 2012

Se faz outono

Não foi difícil para Alice perceber que já se fazia outono. Tão longe quanto seus olhos pudessem alcançar, percebia o chão forrado pelas folhas secas que já haviam cumprido sua missão. Lembravam um tapete cinza maltratado por tanto uso. Caminhar sobre ele provocava ruídos que em nada faziam Alice lembrar das canções que embalaram os verões.  Caminhar  sobre aquele tapete áspero a fazia recordar que não importavam sob quais caminhos teria que pisar, não importavam sob quais canções teria que seguir, independente de tudo,  a busca não poderia parar.
Para Alice, que amava o azul, ver o mundo vestido de cinza a incomodava, mas também a ensinava que nem só de cores vive-se no mundo. O outono a educava. Já não existiam mais ramos nas até então frondosas árvores.  Somente galhos tão inóspitos, tão aparentemente sem vida, onde não cantavam mais os bem-te-vis, as andorinhas não faziam mais verão e nem os populares pardais davam o ar de sua graça. Havia silêncio no ar.
O mar que outrora hipnotizava de esplendor, que com como espelho refletia o azul majestoso dos céus, agora era cinzento. Olhar fixo para suas águas podia iludir que estivesse morto. É que o cinza, por sua neutralidade, permite que se pinte sobre ele a ilusão que quiser ou que vier.
Alice se sentia só. Não havia mais o azul do céu, nem do mar, nem a companhia dos pássaros, nem a sobra das árvores. Fazia-se outono!
Alice precisava ver todos os dias a alvorada de pássaros migrando no mesmo compasso e harmonia em busca de outros azuis. Os pássaros estão sempre em busca, assim como Alice. Vão todas as manhã para terras onde acreditam encontrar ramos e frutos, e voltam mais tarde para seus bosques desnudos, até que a terra gire e devolva suas cores d’antes.
Pássaros sabem que estações mudam,  que não se pode parar, que é preciso cantar, que não se vive sozinho e que tudo passa.
Alice vestiu-se de outono, uma espécie de luto pelas folhas que secaram, pelo azul que se foi e pelas flores que não via.
O outono a educava. E Alice fazia questão de lembrar que era preciso que folhas morressem para que outras brotassem Que era necessário que frutas caíssem, morressem, para adubar o chão e germinar novas árvores...e que o cinza  era preciso para que novos desenhos fossem coloridos.
Até as lágrimas de Alice tinham serventia no outono. Irrigavam o chão seco. Nesses meses, Alice se reiventava, com a serenidade de quem sabia que ainda terá o inverno pela frente. Noites frias, muito frias, ainda virão... E era preciso reservar forças.
Alice sabia que a primavera e o verão ainda voltariam, mas que, até lá, teria que caminhar sobre as folhas secas.
Para Alice, que não gostava do que fosse morno e que não admirava o que fosse neutro, enfrentar o outono era desafiar suas capacidade de adaptação e de reinvenção de si mesma.
Mas Alice era valente. Enquanto as estações não mudassem e a lua cheia não mais se projetasse exuberante no céu nebuloso de outono, trataria de colorir seus dias e noites com as cores que lhes eram permitidas.
Lágrima no barro fazia-se corante vermelho. Bom para colorir rosas. Suor no limo, tinham-se tons de verde. Bons para desenhar folhas....  E, assim, a busca continuaria por novas cores.
Pois é preciso colorir os dias cinzas de outono, com a certeza de que a terra gira e logo voltará a se fazer primavera em sua vida.

Valéria Aguiar

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